segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Fora da Pauta – os bastidores da reportagem.


É como diz o Ricardo Kotsho, as melhores descobertas de uma reportagem, muitas vezes não são aquelas publicadas, mas as que a gente conta quando chega em casa (ou numa mesa de bar...).
Sempre tenho essa sensação e, por isso, ficava frustrado por não poder dividir essas descobertas com os leitores do jornal. Resolvi publicá-las aqui e para socializá-las com mais gente.

A matéria publicada em O Estado, feita a partir do encontro descrito abaixo, você confere na imagem ao lado.

O Catador
Aventuras para entrevistar um homem que madruga para catar material reciclado e que aproveita os dias para ordenar o trânsito da cidade

(17 de setembro de 2008)

São 15h05 e o sol torra aqueles que ousam permanecer na rua sem alguma proteção por mais de cinco minutos. A equipe de reportagem do jornal O Estado (da qual faço parte) segue pelos atalhos do Bairro Piratininga, em Campo Grande (MS), com destino ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), uma ong, onde eu tinha uma entrevista marcada com o presidente da entidade sobre maus tratos que estariam ocorrendo nas Unidades Educacionais de Internação (Uneis).

No carro do jornal, seguem o motorista, Carlos Eduardo, dois fotógrafos, Moisés e Eduardo, e eu. O motorista iria deixar o Eduardo e eu no CCDH e seguiria para outra pauta com o Moisés – eles estavam atrasados. Em uma das curvas, como num lampejo, avisto o diretor-presidente da Agência Municipal de Transporte e Trânsito (Agetran), Carlos Alfredo Lanteri, dando entrevista para uma equipe de TV.

A pasta que ele comanda é um dos assuntos prediletos do jornal, que fez um série de denúncias sobre uma possível indústria da multa envolvendo os agentes de trânsito, conhecidos como amarelinhos. Por conta disso, Lanteri não nos atende há meses. Nem me lembro quando foi a última vez que falamos com ele.

Eu tinha segundos para decidir se pararia para falar com ele ou se seguiria para minha pauta fingido nada ter visto. Sabia que se resolvesse parar para falar com ele ficaria sem carro e depois teria de ir a pé para o CCDH, distante um dez quarteirões dali (esperar outro carro me buscar era garantia de pelo menos 30 minutos perdidos para aguardá-lo).

Pedi que o motorista fizesse o contorno e parasse próximo a Lanteri. Liguei para o jornal no método arcaico adotado pela equipe, o de dar um toque a cobrar e esperar um retorno feito pela telefonista. Queria falar com Milena Crestani, repórter do jornal, que estava mais envolvida com o assunto trânsito e que fez a maior parte das matérias com relação à denúncia contra os amarelinhos. Ele me situou a respeito das denúncias e me encomendou algumas perguntas.

Quando me aproximei, Lanteri, que vestia caminha branco com listras finas azul marinho, já veio se desculpando: - Não vai me dizer o mesmo que o Euclides (Fernandes – repórter da TV Campo Grande, o SBT local), de que eu só dou entrevista para a TV Morena (a Globo local).

Ele havia dado duas entrevistas consecutivas à TV Morena na semana anterior. O assunto era a instalação de novos radares na cidade. Ele concedia a entrevista a TV Campo Grande no canteiro da Avenida Manoel da Costa Lima, perto do local onde dois novos radares haviam sido instalados. A entrevista havia terminado, o câmera apenas pegava imagens diretor-presidente da Agetran conversando com o repórter.

Lanteri jurava que havia dado apenas uma entrevista à TV Morena e que ela fora cortada e utilizada em duas edições do jornal MS TV. No entanto, em ambas apareciam a inscrição “Ao Vivo”. Ele comprovava a versão de que dera apenas uma entrevista dizendo que estava com a mesma camisa nas duas.
- Posso repetir a meia, mas jamais a camisa.

Terminada a entrevista com a TV Campo Grande, fomos para sombra para que pudéssemos conversar mais confortavelmente. Despejei um turbilhão de assuntos acumulados há meses: radares, revitalização de avenidas, novos terminais de ônibus, instalação de quebra-molas em vias em que acontecem acidentes com freqüência, estudo de novos viadutos e também o “assunto proibido”: os amarelinhos.

Ele respondeu tudo. Lanteri fala bastante. É um técnico de trânsito e entende do assunto. No quesito amarelinhos, ele deu uma enrolada, mas passou o seu recado: - Estou responde a tudo que Ministério Público pediu e não tenho nada a esconder.

O pulo do gato

Com o fim do que seria a primeira parte da entrevista, ele me entregou um papel com os locais exatos dos novos radares. Por ter falado bastante, disse que eu teria de pagar uma água para ele no bar em frente de onde eu o entrevistava.

À essa altura, mais de 40 minutos após encontrá-lo, o presidente do CDDH, que me aguardava, já havia ligado e falado com o fotógrafo (eu estava no meio da entrevista e não atendi ao celular) que não poderia mais me receber por conta de outro compromisso. Ele estava bravo por que o deixei esperando.

Eduardo – o fotógrafo – é uma figura engraçada, desses que se mostra por inteiro sem medo de deixar expostos os defeitos. Sabendo que eu sempre ando sem grana e diante do pedido do entrevistado para que eu pagasse uma água, colocou disfarçadamente R$ 2 em meu bolso.

Entramos no bar com Lanteri. Ele tomava água e diante de um anúncio disse que gostava de tubaína. Eduardo e eu dissemos que também gostávamos. Ele pediu, então, tubaína ao dono do bar. Nesse momento, eu ligava para pedir o carro do jornal. Ele perguntou onde ficava O Estado e disse que nos levaria. A iniciativa talvez tenha se dado por conta de uma teoria que ele defende: o problema do trânsito é o excesso de carros que ocupam muito espaço no trânsito e andam – a maioria – apenas com um passageiro.

Aceitamos a carona. Uma pessoa que estava no bar dizia que achava engraçado terem instalado o radar só agora após a morte de várias pessoas no local. Perguntou se éramos jornalistas. – Sim, os três -, respondeu Lanteri. Encucado, o homem disse que não parecia. Na dúvida, soltou: - o senhor não é o secretário de trânsito não, né?!

Diante do silêncio constrangedor, o homem, um desses tipos que freqüenta bares e fica esbravejando contra os políticos o dia todo, resolveu parar de falar conosco. Outro cara surge distribuindo seus próprios santinhos. Ele é candidato a vereador. - Tudo bem, rapaz?! -, cumprimenta Lanteri, animado. O homem parece não reconhecê-lo e só sacode a cabeça, gesticulando que “sim”.

Voltamos ao assunto da revitalização de uma das vias da cidade. Ele diz que não lembra de todos os detalhes de cabeça, mas o projeto está sob sua mesa. Pensa em ligar para a secretária para que ela passe os pormenores. Depois, abandona a idéia e nos convida para ir no carro dele até sua sala na Agetran.

Eu aceito. A sensação era inacreditável. A pessoa que ficamos seis meses sem falar, me concedendo uma longa entrevista, tomando tubaína comigo num bar de esquina e me convidando para ver detalhes de um projeto em seu escritório, que até então ninguém havia noticiado.

Com sede de falar...

Fomos para sala dele na Agetran. Vimos os detalhes do projeto, mas ele parecia disposto a falar de mais coisas. Lanteri mostrou um power point que havia feito para uma apresentação aos ex-prefeitos - que agora se reúnem para discutir os problemas da cidade – sobre o trânsito em Campo Grande.

Ele queria também falar sobre um evento que estava organizando: “O Dia Mundial Sem Meu Carro”. Chamou a responsável pela coordenação direta do evento e detalharam o assunto.

Quando voltei ao tema “amarelinhos”, ele disse que não falaria mais sobre o assunto. No entanto, resolveu fazer alguns desabafos in off (...). Nada bombástico, mas disse coisas que nunca conseguimos arrancar dele. Infelizmente off é off.

Lanteri começou a falar sobre sua preocupação com o meio ambiente. Disse que sai de casa bem cedo, de calção e camiseta para fazer caminhada até o local onde moram seus cachorros (sim, eles moram separados). Neste percurso, vai catando latinhas e outros produtos recicláveis pelo caminho.
- Só não reviro lixo, mas cato tudo que vejo pela frente.
Segundo ele, as pessoas que freqüentam a Praça Ary Coelho, a principal da cidade, incluída em seu percurso diário, acham que ele é um catador de lixo. – Não ligo – desdenha.

- Um dia estava subindo a (Avenida) Afonso Pena e ouvi duas pessoas correndo atrás de mim. Eles estavam vindo me chamar para o sopão. Acham mesmo que sou um catador.

Lanteri, o catador, com status de secretário municipal, conta ainda que um “drogado” chegou a questionar se o ofício de vender material reciclado dava dinheiro. – Inventei um valor e ele retorceu o nariz – reproduz.

Na verdade, ele doa os materiais que recolhe para os catadores profissionais. Nessa área é apenas um amador. Ele afirma que faz a separação do lixo orgânico do reciclado e quando come uma banana faz a compostagem da casca. - Tenho que recompensar meu consumo. Compro muitas camisas e muitas coisas. Tenho que recompensar isso.

Quando o assunto volta a ser trânsito, ele diz que não acredita em educação para o trânsito (“Apesar de já ter sido premiado nessa área e dar consultoria sobre o assunto em três estados”). Lanteri dá o exemplo de uma das escolas mais tradicionais da cidade, onde os alunos não atravessam nas faixas da esquina e querem cruzar bem ao frente ao portão da escola, localizado no meio da quadra. – No trânsito temos que fazer pequenos sacrifícios pelo bem comum: dirigir mais devagar, não beber, andar meia quadra para atravessar a faixa. Não posso só pensar em mim. Eles não podem atravessar no meio da quadra e ter um guarda disponível só para eles porque são ‘filhinhos de papai’. Isso atravanca todo o trânsito.

A crença dele, na verdade, é sim na educação, que segundo ele não deve ser direcionado ao trânsito e sim a ética: - Quando a pessoa tem noção dos direitos do outro, ela respeita e isso se estende ao trânsito.

Marcelo Armôa, editor de Cidades - na qual trabalho - me liga nesse momento. Preciso retornar ao jornal, já são mais de 17 horas. O motorista me aguarda em frente à Agetran. Respondo que saio em cinco minutos.

Lanteri continua falando. Está com sede de falar com a gente. Ele afirma que não existe uma “indústria da multa” amparada nos amarelinhos para multar todo mundo. – Você sabe onde almoço (um restaurante de comida vegetariana onde já o encontrei algumas vezes). Lá todo mundo estaciona na calçada. Se existisse indústria da multa os amarelinhos estariam lá todos os dias. O que existe é indústria da infração – retruca.

O tempo passa e sinto que realmente preciso ir. Já havia passado duas horas que tinha saído do jornal. Ia me despedindo e estava de olho em um Código Brasileiro de Trânsito de bolso que estava sobre a mesa dele. Resolvei arriscar achando que não teria nada o que perder: Queria te pedir um desse – eu disse.

Prontamente ele me providenciou outro exemplar dizendo que aquele continha anotações principalmente no artigo 181, que versa sobre estacionamento. Me despedi, agradecendo e brinquei que não havia doído ele ter me dado entrevista e que aquela valeu por todas que ele havia deixado de me dar e que a gente teve de escrever: “Foi procurado, mas não retornou as ligações até o fechamento desta edição”.
- Não ouço mensagem de voz. Só olho as que chegam por texto – justificou, já com grau de coleguismo.

Entre Aspas: Repórter é como goleiro. Tem de ter sorte. Às vezes o goleiro é ótimo, mas no último minuto deixa entrar um gol. Ricardo Kotscho.