sábado, 29 de maio de 2010

Cheiro de sábado*

A chuva desce como se fosse sábado. Das sacadas escorre como se pudesse tranquila cair das pequenas varandas dos apartamentos do 585. Protegida, repousa a esteira, a passadeira, o varal, a lavandeira, a cadeira... Também é dia de feria, lembra o entregador que desce a rua plainar, como se sábado fosse e descesse devagar. Ocupa os lugares que durante a semana são dos carros e que hoje fogem da rua para não precisarem se isentar das taxas para estacionar.

Os sons fluem como se a calmaria tivesse tomado conta do bairro. Crianças brincam, o forró esquenta, a bola roda, o cabeleireiro pesca a falta de uma festa que capturasse fregueses. A chuva espanta, mas calma, volta a dar lugar ao sol.

Nada é intenso. Tudo ocorre calmo, como uma tragada prolongada no cigarro e corre como a fumaça que faz ondas e some no ar. Está tudo indo, vindo, saindo, caindo e partindo na General Jardim. Nada parou, mas a semana tem gosto de fim – e como é sábio o tempo, que permite que se corra sem precisar andar.


[novembro de 2009]

*Texto produzido em escrita rápida durante aula de pós-graduação. (mais um da série chuva...)

Entre Aspas: O fim atrapalha todo o meu voo. Mário Peixoto.

domingo, 23 de maio de 2010

Café*


Era uma tarde de domingo, o que deixava tudo com ar mais grave. Chovia. E isso tornava o clima ainda mais tenso. Passos carregados de água, carros cortando as gotas e o café quente descendo a garganta fazem seus olhos se arregalarem ainda mais. Poderia assassinar alguém para aliviar tudo isso. Um desconhecido ou aquela atendente feia que insistia em não olhar nos seus olhos?

Precisava ser logo. O azul escuro predominava o céu, anunciando o preto da noite. A mesma cor da camisa que vestiu no outro dia para ir ao enterro de sua vítima. Costumava fazer isso. Aquela moça sem graça nunca mais serviria cafés com cara azeda. Não voltaria a esquivar-se de responder “boa noite”, “obrigado” e “por favor”, lançados por ele. Ao ver o caixão aberto, surpreendeu-se com uma característica: esboçava um sorriso. Ato que nunca a viu fazer em vida. Pelo menos, não nos 15 minutos em que conviveram. Saiu do cemitério com a sensação de dever cumprido: mais uma alma estava liberta.

[14/03/2010]

*Amanhã, 24 de maio, é comemorado o Dia Nacional do Café.

Entre Aspas: Uma tarde de domingo mora dentro de mim. GSD.

sábado, 15 de maio de 2010

Tarde chuvosa*


Quando o sol se esconde atrás das nuvens, lá vem a chuva molhar o gato que passeia pela rua. A dona-de-casa, que volta do supermercado com as compras para o almoço, tenta se proteger com uma das mãos. O motoqueiro apressadinho acelera, mas fica num buraco na esquina. A jovem universitária já se recusa a sair de casa, o cabelo com chapinha não pode molhar.

Seu Pedro adiou mais uma vez a procura de emprego: “Chovendo hoje?! Então, nem pensar”, justificou à esposa. Quem mais naquela rua ousaria a sair de casa? Paulo, o nerd, ficou na internet. Suzana, a vizinha gostosona, preferiu um filme na Sessão da Tarde. Ah! O Paulo e a Inês, o casal apaixonado e recém-casado do 911, resolveram tomar banho de chuva e namorar. Dividem espaço com as crianças do 615, que logo são repreendidas pela mãe.

A enxurrada desce vermelha, colorindo a rua de asfalto e lavando a sujeira deixada pelos muitos cães que transitam por ali. A cena toda é composta e vista pelos taxistas que estavam ali desde o começo, mas nem tomam nota da chuva que cai e já ganhou ares de tempestade. Eles continuam vendo a reprise dos melhores momentos de um jogo entre o Guarani e Portuguesa na TV. Na conversa, a chuva não entra na pauta, mas as jogadas da rodada são todas esmiuçadas. Minutos depois, quando a chuva para, a rua brilha. Todos voltam aos seus afazeres. Aquele gol perdido pelo atacante ainda povoa a cabeça dos homens que esperam uma corrida. Há um lamento no ar.

[13/04/2009]

*Texto produzido em escrita rápida durante aula de Criatividade na pós de Jornalismo Literário

Entre Aspas: Domingo só quem tem mulher feia quer sair de casa. Sabedoria popular.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

À decadência digo nada!*



Sem entender nada de nada.
Dá nada. O nada não é nada.
A mensagem está dada: dê nada!
A danada não tem nada a dizer, a não ser: de nada.

[23/01/2010]

Sem aspas para pressionar uma frase e botar aqui.

PS: Esse é o primeiro vídeo que posto em seis anos como blogueiro (já que esperei tanto tempo, podia ter sido algo mais "edificante", né? Ah, deixa para lá: enquanto à decadência digo nada!).

*Dedicado à Mafer Maia, a líder dos vídeos engraçados do Youtube, a amiga de todos os loucos do Masp...hauhau

sábado, 1 de maio de 2010

(Está)

Sem mulher, sem discurso,
Sem muro, sem vontade,
Sem casa, sem dinheiro,
Sem cigarro, sem liberdade,
Sem álcool, sem cachorro,
Sem espelho, sem cidade,
Sem juízo, sem carro,
Sem camisa, sem idade,
Sem sorriso, sem mochila,
Sem ideias, sem coragem,
Sem rimas, sem beleza,
Sem sapato, sem tristeza,
Sem audácia, sem identidade,
Nem senha, nem paisagem

Sem ternura, sem por quês,
Sem morrer, sem dívida,
Sem tamanho, sem temor,
Sem angústia, sem com quê,
Sem lençol, sem música,
E com sensação de 100 anos, nem mais espera você.

[23/01/10]


Entre Aspas
: Literatura não é para nos convencer de nossas virtudes, é para encarar nossas limitações. Fabrício Carpinejar.