- Adora chá! - comenta Elenir, sobre a filha, como se
confessasse um crime. A revelação de uma preferência da filha que é o maior
tesouro da assistente social pode ser considerada banal. E talvez seja. Mas
revela muito daquela adolescente de 16 anos que Elenir ama tanto. A expressão
dela ao fazer esse comentário ecoa até hoje na minha memória. Fabiana, a filha,
é negra e tem cabelos cacheados curtos que preserva presos. Essas
características também podem descrever Maristela, 19 anos.
A jovem vive isolada em seu mundo introspectivo, mas aos
poucos revelou suas histórias e aflições. A mãe, Miriam, é uma prática advogada
que tem dificuldades de dialogar e de enfrentar os problemas emocionais da
filha.
A jovem gosta de rap, o ritmo de protesto da periferia que
também agrada Ezequiel. Um anjo torto que vive hoje nas sombras dos becos de
Cuiabá. Ele teve uma tentativa de adoção pela família de Silvia. Uma
conselheira tutelar, que assim como Elenir é assistente social. Entretanto, o
garoto não suportou as regras impostas pela família e foi em busca do pai
biológico. Acabou voltando para as ruas, mas dessa vez em uma cidade desconhecida.
Ezequiel, 13 anos, tem outra característica em comum com
Maristela: ele luta judô. Os dois são elogiados na prática dessa arte marcial.
Gabriel, 6 anos, praticava outra arte marcial, o karatê. Mas desistiu após não
poder fazer a prova de troca de faixas. A mãe Soila e o pai Geraldo, foram quem
frearam o menino após ele cometer uma de suas traquinagens. O casal é rígido na
educação, mas também são muito carinhosos e amam muito os filhos. Hoje Gabriel
prefere brincar de futebol e cavalgar na fazenda ao lado da irmã Larissa de
três anos.
A menina loira e amável é carinhosa, assim como Amadeus que
tem essas mesmas características e a mesma idade que ela. O menino, junto com a
irmã Graziele, 6 anos, é o xodó da casa de Stephan e Sueli. Graziele, assim
como Gabriel e muitas outras crianças brasileiras, adora Rebelde. O grupo
mexicano que tem novela de mesmo nome no SBT.
Às 6h30 da manhã, Elenir prepara as coisas de Fabiana para
irem juntas para escola. Soila faz queijo, mas já preparou o café e arrumou a
cozinha. Sueli também arruma Grazieli para levá-la a escola. Silvia desperta e
pensa no dia cheio de trabalho que terá no conselho tutelar. Enquanto isso,
Miriam ainda dorme mais um pouco e só levanta às 7h, quando segue para o
trabalho. Essas cinco mulheres são donas-de-casa, trabalhadoras, guerreiras,
mas acima de tudo mães!
Mães de filhos que nasceram do amor. Amor
"ocasional", que nasceu numa visita ao abrigo Vovó Túlia, como é o
caso de Elenir, Soila e Miriam. "Ocasional" também foi o encontro de
Silvia e Ezequiel e de Sueli e Stephan que adotou uma família toda (ou foi
adotado?). Mas quem acredita em ocasionalidade? Coincidência? Eu prefiro
acreditar no destino...
Essas cinco histórias tem Campo Grande como eixo de ligação.
São vidas que correm paralelamente e às vezes se cruzam, só para depois
continuarem correndo cada uma o seu caminho. Assim, acontece quando Miriam
visita no Marco (Museu de Arte Contemporânea) a exposição de fotos de Stephan.
Ou quando Elenir chega ao IBISS logo após a saída do suíço. Ela faz consultoria
na ong que é parceira da Girassolidário, agência de notícias que Stephan
preside.
Miriam tem uma amiga que trabalha no IBISS, e assim como
Elenir, já teve um fusca no passado. Elenir conta com o irmão Marcelo para
cuidar de Fabiana. Cabeleireiro, o padrinho da adolescente, já precisou da
ajuda de Scarlet, uma amiga, para pegar Fabiana na escola. Scarlet é de
Anhanduí, distrito próximo à fazenda e Soila e Geraldo que conhecem a travesti
de vista. O casal trata as doenças dos filhos através da homeopatia, como
também faz Stephan e Elenir.
Você deve estar confuso com tantos nomes. Não deve mais
saber quem é quem. Ou pode estar achando que com tantos pontos parecidos as
histórias sejam todas iguais. Engano grande. As vidas dessas cinco famílias são
muito ricas, particulares, cheias de especificidades, no entanto, em alguns
momentos se parecem, se afunilam.
Essas histórias foram compartilhadas pelas famílias à Laiana
e eu. Foram quatro meses em contato com essas pessoas, vivendo um pouco de suas
rotinas, compartilhando um pouco de suas vidas. Tudo isso para fazermos o nosso
projeto experimental, exigido para concluir o curso de jornalismo na UFMS. Ah!
Sim, o nosso tema é adoção. Um livro de cinco histórias de famílias que tem
adoção em seu histórico.
Tudo foi muito intuitivo nesse trabalho. A escolha do tema,
que veio depois de defirmos essa parceria - a dupla. Hoje, vejo que jamais
faria projeto experimental com outra pessoa que não Laiana. Não daria tão
certo. O tema até pensei em desistir quando descobri um outro projeto que iria
trabalhar com o mesmo assunto. Contudo, a adoção já tinha me escolhido.
Assim aconteceram com nossas histórias. Elas nos escolheram.
Elas vieram ao nosso encontro. Esse trabalho foi um encontro de boas histórias,
pessoas incríveis e dois jovens jornalistas em formação com sede de escreverem
narrativas. Críticos com nossos textos que muitas vezes chegamos a julgar
pobres.
Para muitos é uma tarefa hercúlea escrever a quatro mãos.
Para mim e pra Laiana foi até tranqüilo. Foi muito mais difícil, por exemplo,
ter que ter transcrever as fitas das gravações ou ainda enfrentar o cansaço do
dia-a-dia do trabalho e mesmo assim ter inspiração e criatividade para escrever
um bom texto. Muitas vezes achei que não iríamos conseguir. Foi aí que contamos
também com a sorte. Murphy tirou férias nesse período e até deu as caras em
alguns momentos, mas o contornamos.
Laiana e eu tivemos muitas sacadas juntos, discordamos
poucas vezes, em todas chegamos a um consenso. Cedemos, rimos, assistimos TV
enquanto escrevíamos, nos entendemos pelo olhar, discutimos poucas vezes, e
fizemos um livro que para nossa surpresa foi muito bem criticado. Não
esperávamos tantos elogios - de verdade.
Eu, em alguns momentos, cheguei a ter crises internas,
porque nosso livro não receberia prêmios, como a revista do Antônio, não seria
usado como instrumento de conscientização como o guia sobre bulling, de
Jéferson e Bruno, e nem era um produto nunca antes feito no Estado, como a
revista especializada sobre o terceiro setor, feita por Maria Fernanda e Camila
Abelha.
Hoje percebo que nosso livro joga luz sobre pessoas que
nunca ganhariam espaço na grande mídia. Esses seres humanos que praticaram um
ato também humano, a adoção, no máximo seriam tratados como números.
Humanização, narrativa e novo jornalismo. Esses foram nossos nortes. E enfim,
Ijuim, entendi o que são as conexões.
Considero que nossa "obra" possa contribuir ainda
com aqueles que querem adotar. Mas mais que isso são o retrato de histórias de
vidas, que foram escritas assim: com vida. Construímos o que pra nós é o
jornalismo, a arte de contar histórias, a história do cotidiano.
Essas vivências estão impressas no livro "EnCOMtro -
histórias de pessoas que ganharam uma nova família" que na banca de
avaliação foi elogiado pelos professores e jornalistas Mauro Silveira, Jorge
Ijuim e Moema Urquiza. (sinceramente não sei se o livro é tudo aquilo, mas se
eles disseram...). Hoje a obra está à venda por R$ 22.
Muitas dessas experiências levo pra vida toda. Ensinamentos
que tive em contato com essas pessoas, na produção desse trabalho. E um dia
pretendo também adotar um (a) filha (a). Gostaria de agradecer novamente a
todos aqueles que contribuíram. Não se faz nada sem os amigos e nessa
trajetória descobri que tenho alguns com quem sempre posso contar e que esse é
o bem mais precioso que temos na vida! Desejo que em 2007 a vida e o destino
proporcionem muitos encontros com esses amigos!
Valeu a pena!
Entre Aspas 1:
Escrever um livro
Eu quero escrever um livro
Pra dele me envergonhar um dia
Pra guardar na estante
Pra quase ninguém ler
Pra me sentir um intelectual (medíocre)
Pra me gabar modestamente
Para outros saberem quem sou...
Escrevendo somos transparentes
Sou bom, sou ruim, sou eu mesmo! (15/07/06)
GSD
Entre Aspas 2: Escrever é posar nu. Tudo ali é você, sem
roupas, despido para que todo mundo possa ver e ler como quiser. Carlos Moraes/
GSD.
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