sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Iniciante

A vida oferece um milhão de possibilidades diferentes de se viver. A cada dia você pode descobrir uma nova. Foi nessa busca que vivi a experiência que descrevo agora. Meu primeiro contato com o Santo Daime, a bebida sagrada dos Incas. Hoje ela faz parte do xamanismo, uma corrente religiosa que busca a cura por meio do transe.

Sou um sem-religião que tem curiosidade em saber como as pessoas fazem sua ligação com Deus, como são seus ritos, como manifestam sua crença, como fazem suas orações, no que acreditam e o que as levou a essas experiências. Conheci o Daime por meio de um amigo, que prefiro preservar a identidade. Fora da igreja, fomos para a chácara dele e lá produzi o texto que segue abaixo. As frases desse texto são truncadas. Às vezes incompletas, mas cheias de sentidos. Escritas sob os primeiros efeitos da bebida:


É o despertar da consciência.
Gosto amargo, bebida forte, fermentada.
Cor da terra com suavidade da mandioca. Gosto que fica na garganta.
Salve Rainha, Pai Nosso, Ave Maria.
Um oferece ao outro.
Em uma chácara a 26 quilômetros de Campo Grande (MS), com céu estrelado, lua crescente, barulho dos bichos (grilos e sapos), com o frescor do campo e o tempo que não passa.
Adormece antes. Toma banho, come, um grande ritual para chegar (afazeres, tarefas...): conversa, trabalho, acordar, comer, enrolar, boicotar, dormir.
Um ciclo de vida. Uma vida sem objetivos, metas.
Uma vida vazia, sem mente, mentor, sem alma ou Deus.
Sem natureza, criador e criatura.
Sem felicidade ou sentimentos de tristeza, alegria e depressão.
Sem altos e baixos.
Um dos caminhos escolhidos, percorridos, que pode ser trocado, revivido, pulado...
O gosto que está na garganta é quente, envolvente.
Psicoativo.
Grilos, besouros e luzes da cidade ao longe.
Não há como fugir de mim mesmo, do meu eu, deste ser que habita e dorme dentro de mim, que eu escondo, abomino e deprecio, preservo com medo de julgamentos e que vive oculto.
Uma revolução parece acontecer dentro de mim. Revira minhas tripas e atinge todo o meu estômago, passando pelo meu esôfago e sentindo até a garganta, onde tudo começou.
Minhas dores e dissabores vão ficando aparentes. São mãos que soam, olhos que pesam e barriga que fermenta.
Práticas xamânicas. São 42 nomes que denominam a aiuasca.
É a limpeza dos sentimentos, das lembranças do espírito e do organismo.
A lua desce amarela. A lua é um espetáculo a parte, uma laranja em pedaço no céu.
A segunda é mais forte. “Vou passar mal”, aviso, rejeito, repugno, mas tenho que tomar. O corpo reverbera, esquenta, ebule, sangra.
Diferente, consciente e mundano.
Transformado. Uma viagem ao Eu, ao espírito.
Escrevo acelerado, com força e vigor. A barriga borbulha. A lua se esconde atrás da paisagem. Pede licença após seu espetáculo, se esgueira.
Barriga e mente amortecidas, alucinações, o corpo esquenta e estremece. A cabeça esvazia e é invadida por uma série incontável de formas geométricas diferentes coloridas que se intersectam, passeiam e tomam conta de tudo. É hora de um novo espetáculo. Com a cantoria põe tudo pra fora. A sensação de vazio é seguida pela plenitude, do bem-estar e da limpeza do corpo e da alma. (5 de novembro de 2008)

Agora, sou um iniciado, como eles dizem. Conheço o que seria a redenção e isso não tem mais volta. Isso traz responsabilidades e compromisso. Pra mim, foi uma experiência bacana. Levou ao meu próprio encontro e fez me enxergar “de fora”. Não estou convertido, ou adepto à prática. Fui saber “qual é” a do Daime e sai com uma sensação legal. Como escrevi antes sou um curioso na área religiosa e quero continuar conhecendo as maneiras de ligação das pessoas com Deus. Talvez essa curiosidade e essa não-busca seja a minha forma de manifestar a minha crença sem fé em um ser superior.

Entre Aspas: O mundo é muito mundo para se ficar em um lugar só.

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