segunda-feira, 2 de maio de 2011

Direto para Porto Murtinho


Não existe um ônibus que leve passageiros da capital paulista à cidade sul-mato-grossense da fronteira entre Brasil e Paraguai. Mas Porto Murtinho é ligada ao estado de São Paulo por uma BR, uma estrada federal, a 267. E o trajeto entre as cidades pode ser feito com escala em Jardim, num ônibus da viação Motta, com viagens às terças e sextas ou com passagem em Campo Grande, o que possibilita ir em qualquer dia da semana.

Apesar dos seus 15,3 mil habitantes, segundo censo do IBGE em 2010, Murtinho, como é chamada pelos seus moradores, é metida. Tem porto, aeroporto e uma identidade bastante marcante. O isolamento da cidade é fator importante para esse aspecto. Está localizada a 200 quilômetros do mais próximo município de Mato Grosso do Sul, Jardim, e a 454 quilômetros da capital do estado, Campo Grande.

Distante dos centros sul-mato-grossenses, Murtinho se abre para o Paraguai. Do outro lado do Rio Paraguai, você está no país vizinho, numa ilha chamada Margarita ou numa colônia denominada Carmelo Peralta. A uma hora dali, está Valhemi, a cidade mais próxima do lado paraguaio. É de lá que vem as motos que agora dominam as ruas da cidade. Com R$ 2 mil, grande parcela dos moradores substituiu sua magrela pelo veículo de duas rodas motorizado.

É do Paraguai que vem boa parte dos habitantes. É de lá que vem o sotaque, as palavras em guarani, o costume de tomar tereré, de comer chipa e sopa paraguaia. Precisa de uma tecla SAP? Confira no pé do texto o que é cada uma dessas coisas. Se esses costumes são reproduzidos em todo o Mato Grosso do Sul, Porto Murtinho prova que é mais Paraguai do que Brasil também no fato de cultuar a imagem de Nossa Senhora de Caacupé¹, de festejar o Touro Candil², de comer lambreado³ e ouvir catchaca³¹.

Parte dos moradores trabalha em fazendas na criação de gado, outra na prefeitura, onde se ganha o salário mínimo. O frigorífico Marfrig paga um pouco melhor para os que desossam bois. Do exército, vem a classe média alta da cidade. O comércio é tímido. O turismo se sustenta da pesca e já foi alvo de denúncias pelos fins sexuais de alguns passeios. Outros 1,1 mil recebem o Bolsa Família do Governo Federal.

Os bairros ganham nomes óbvios. O conjunto habitacional é Cohab. A parte do fundo da cidade é o Fundão, até recebe denominação de Salin Kafuri, mas ninguém se refere ao lugar assim. O Joquey Club é o bairro vizinho ao antigo local que abrigava as corridas de cavalos. Já o centro é extenso, pois antes nada recebia o nome de bairro.

As casas de Porto Murtinho não ficaram às escuras nos apagões nacionais que atingiram os demais municípios sul-mato-grossenses nos anos 2000. A distância e o pouco número de habitantes nunca encorajaram a Empresa de Energia de Mato Grosso do Sul (Enersul) a levar linhas de transmissão para a cidade. E a luz continua a ser feita a partir da queima do carvão em uma termoelétrica exclusiva para os murtinhenses.

Praça de eventos

A prefeitura não se preocupa muito com a sustentabilidade. A cidade fica o ano todo colorida com luzes, que antes serviam apenas para anunciar o Natal. A praça é um dos pontos enfeitados. O local ainda é o principal encontro dos jovens da região. Ali fica uma locomotiva Maria Fumaça, que marca o período em que um trem ligava a cidade à fábrica de tanino, localizada no antigo distrito operário de Quebracho. Há um mastro com uma bandeira, que lembra que isso aqui é Brasil. No seu entorno, ficam a sorveteria, a pizzaria, o Banco do Brasil (o único da cidade), a Receita Federal, o CineTeatro, que abrigou um cinema nas décadas anteriores, foi abandonado e hoje revitalizado abriga palestras e filmes esporádicos (não-comerciais).

Em frente à praça, também fica a Praça de Eventos, um local criado pela prefeitura para abrigar os shows e eventos da cidade. A alguns passos dali, está o antigo Mercadão, que reformado virou “Praça de Alimentação”, vendendo comidas típicas para turistas e moradores da cidade. “Nem parece Murtinho”, comenta uma moradora, admirando o aspecto do local. As índias e paraguaias que antes vendiam peixes, grãos, mandioca, ervas e outras iguarias no mercado foram expulsas e agora se abrigam em barracas esparsas nas franjas da cidade.

É ao lado da Praça de Eventos que cruzo com o prefeito Nelson Cintra e sua esposa, que é primeira-dama e secretária de Assistência Social - um clássico das cidades interioranas. Cintra tem o porte de quando Faustão ainda era gordo. Talvez ele seja um pouco mais largo nos quadris do que o apresentador era. O rico fazendeiro usa calça jeans e camisa branca por dentro da calça. A primeira-dama usa o tradicional cabelo curto-escovado-loiro.

Simpáticos, eles cumprimentam os passantes. A prima, que nos acompanhava no passeio, disse que minha mãe era filha de Murtinho e tratou logo de me apresentar: “Esse é um primo nosso. Ele é jornalista e trabalha no Estadão em São Paulo!”. Minha mãe exibia um sorriso. Eu repliquei uma versão constrangida dele. O prefeito perguntou o que achei da cidade e, enquanto eu respondia “Está bonita”, ele já me convidava para um café na prefeitura na segunda de manhã. Tentei dizer que ia embora antes, mas ele nem ouviu.

Freedom

A Rua Joaquim Murtinho começa do dique, um muro de contenção que envolve a cidade e a protege do Rio Paraguai. Porto Murtinho fica, literalmente, na curva do rio e já foi atingida por enchentes na década de 80, antes das mudanças climáticas serem responsabilizadas por esse tipo de acontecimento. É o dique que impede que a brisa do rio chegue até as casas e abrande o calor que chega fácil aos 40 graus. O céu aqui costuma ser azul, sem nuvens e com um sol que parece não se deter em nenhuma barreira antes de atingir os miolos das pessoas.

Na esquina da Joaquim Murtinho com a via que margeia o dique fica a prefeitura. O prédio antigo dá as costas para a cidade e se vira para o Paraguai, com sua frente para o rio. Uma escadaria facilita a subida das águas do Paraguai até o prédio, que também esteve abandonado por anos até ser revitalizado e voltar a abrigar a administração municipal.

A Joaquim Murtinho corta o centro e é um das poucas ruas asfaltadas do início ao fim. Em outra de suas esquinas fica a casa onde morava D. Assunção, a falecida mãe de Zeca do PT, ex-governador de MS, filho da cidade. Ali também fica um antigo prédio que abrigou o Bar e a Casa Formosa. Um armazém sortido, como era classificado o antigo comércio da Família Soares, no local.

Nessa casa mora a matriarca da minha família, Lúcia, tia-avó que criou os irmãos mais novos, quando os pais morreram. Ela resistiu ao tempo e ainda toma conta do casarão. Do Armazém restaram as máquinas registradoras, um cofre e um balcão. Do Bar, a mesa de sinuca. Sem nunca ter casado, nem ter filhos, Lúcia é dessa gente que dedica toda a vida para cuidar dos outros. E do alto dos seus 84 anos ainda cria Bianca, uma “bisneta”, que agora tem 11 anos e já inverte os papéis, e de um irmão alcoolista.

[Minha mãe e Bianca em frente ao prédio da prefeitura]

Do lado da extinta Casa Formosa, ficava a Casa do Fazendeiro, onde por anos vendeu-se chapéus, estábulo e materiais para serem utilizados no campo. O comércio estava sempre cheio de homens atrás de chapéus, fivelas e botas, que ostentavam suas masculinidades com suas potentes caminhonetes. A Casa também fechou.

No seu lugar, foi aberta a primeira boate da cidade. E esse fim de Brasil mostra que está antenado à evolução do mundo moderno. O local chamado de Freedom ostenta cortinas coloridas e abre apenas sextas e sábados, e é hoje, ao lado da Andorinhas, a única danceteria de Porto Murtinho. Enquanto a Freedom é uma boate gay, a Andorinhas é um tradicional clube que toca vanerão, polca paraguaia, catchaca e músicas sertanejas e é frequentado por um público que já passou há algum tempo dos 30anos.

No sábado chamado de “da Paixão” pelos cristãos, o dia que antecede a Páscoa, a dúvida era se os donos da boate iam ignorar o “dia santo” e abrir as cortinas. “Eles não respeitam nada”, comentava uma vizinha pela manhã. Mas à noite as luzes coloridas não piscaram e as músicas dançantes não entoaram. A Freedom ficou recolhida.

Do outro lado do rio

Os chalaneiros se amontoam nos pés do dique. Em suas embarcações, levam moradores e turistas até a outra margem do Rio Paraguai. Para realizar a viagem entre Brasil e Paraguai não pedem identidade, passaporte ou qualquer outro documento. A travessia (ida e volta) sai por módicos R$ 3 por pessoa. Do outro lado, está a Isla Margarita, que como o nome anuncia é uma ilha de água doce, que fica no meio do rio.

Ao invés das chalanas - canoa com remos -, a travessia pode ser feita por barcos motorizados. A viagem dura cerca de 10 minutos nas embarcações não-motorizadas. Em tempos de cheia no Pantanal, algumas das construções do outro lado estão próximas de serem inundadas. Nada grave, já que o Pantanal vive da pulsão entre a fase de seca e de cheia todo ano.

Na Isla Margarita, há três comércios de muambas chinesas trazidas sem pagamento de impostos. Por lá, você encontra pneu, perfume, bebida, produtos eletrônicos e principalmente material para pesca. As mercadorias, informam o vendedor, são subprodutos, sobras do que é vendido em Pedro Juan Caballero e Cidad Del Este, cidades tradicionais no comércio de produtos falsificados.

O povoado deve ter menos de 100 moradores, mas conta com uma rádio, um dentista, uma subprefeitura e um destacamento da Marinha paraguaia. Da igreja católica, vem a cantoria de um desafinado coral de crianças em espanhol. Aqui também se fala guarani e todos se comunicam em português ou portunhol, afinal  a maior parte dos visitantes é proveniente do Brasil.

“Nambrena”

Das misturas das línguas surge um vocabulário próprio, repleto de neologismos. “Aviassido”, por exemplo, deve ser um derivado de “Havia sido”, mas é usado numa toada só, quando os murtinhenses querem dizer algo como “Aviassido que a fulana está grávida”. Um outro morador local pode responder: “Nambrena, todo mundo sabia disso”. Nambrena é, portanto, uma negação, algo como “nada disso”.

Numa possível continuação desse diálogo você poderia ouvir: “Quati! Ninguém tava sabendo disso ainda”. Quati é uma interjeição, usada para dar ênfase e em alguns casos assume a mesma função do “égua” usado por paraenses.

Palavras e entonações que vão dando o tom a essa cidade de terra branca, onde o esgoto corre a céu aberto nas vielas dos bairros. Lugar em que se encontra carneiros, patos e galinhas pela rua. Cidade que ostenta construções antigas, de um tempo que abrigou disputas da Guerra do Paraguai, fábrica de erva mate e de tanino. De um povo que se orgulha da sua terra e dessa fronteira entre a simplicidade e a alegria.


SAP:
Tereré: bebida gelada feita com erva-mate. Uma espécie de versão gelada do chimarrão gaúcho.

Chipa: salgado de queijo, feito com polvilho. Lembra o pão de queijo, mas tem formato de ferradura.

Sopa Paraguaia: torta de milho salgada. Não é líquida. O nome do prato parece ter resistido ao tempo, já que na Guerra do Paraguai, os soldados precisavam transportar a iguaria bastante consumida na região e transformaram-na em sólida. Nesse site há outras teorias sobre como a sopa se transformou em sólida.

1-Nossa Senhora de Caacupé é a padroeira do Paraguai e patrona de Porto Murtinho.

2- Touro Candil: Lenda paraguaia, onde dois touros disputam por meio de duelos culturais na arena a paternidade do famoso Touro Candil. A disputa é entre o Touro Bandido (verde) e o Touro Encantado (amarelo) em uma brincadeira com música e dança.

3-Lambreado: bife com ovo e farinha de mandioca.

31 – Catchaca: ritmo dançante paraguaio, popular também na Argentina. Veja uma música aqui. A versão mais moderna dele é uma espécie de releitura funk, chamada de reggaeton, que faz sucesso também nos outros países latinos.

*Título em homenagem a Maria Fernanda e as inúmeras conversas que quase sempre terminavam em gostosas gargalhadas. Numa delas, ela me zombou por comemorar ao conseguir ir “Direto (de São Paulo) para Porto Murtinho”.

**Texto produzido com apoio de Julio Simões, amigo jornalista interessado em questões sul-mato-grossenses.

Entre Aspas: Toda viagem, seja curta ou longa, para perto ou para longe, é sempre para dentro da gente. Abre uma possibilidade única de nos enxergarmos – e aos outros – com olhos novos. Eliane Brum.

Um comentário:

casspaz disse...

Incrivel viajo a 06 anos para Porto Murtinho, conhecendo a cidade fiquei encantado com o texto...meus parabens...