Viviam uma vida pacata. Jantavam juntos às nove vendo novela, adoravam comer brigadeiro no fim de semana. Ele cozinhava, ela lavava as louças. Ele trocava as lâmpadas, ela os tapetes. E a relação se dava instintivamente, numa harmonia invejável para os demais casais.
Numa noite, ela pediu que ele virasse o abajur para o seu lado para que pudesse ler o livro que ganhara. Foi o tom da voz dela que fez com que algo se estilhaçasse. Não foi o abajur, nem a lâmpada, mas a aura que existia em torno da mulher. Ele passou a vê-la mais turva e agora parecia outra. Era ela que sempre comandava seus atos. Onde antes havia consonância, ele via a mão pesada da esposa dirigindo e provocando seus atos.
Ele passou a resistir aos comandos. As discussões se tornaram frequentes. O casamento de anos começou a minguar. Até tentaram insistir, mas tudo acabou com ela decidindo quem ficava com o quê. Ele agora bebe no balcão solitário do bar e vive da procura do que perdeu. Espera poder voltar a sentir a métrica harmoniosa de uma canção enquanto caminha.
Entre Aspas 1: Todo o meu horizonte vital se povou, e se tornou mais denso, mais úmido, mais crispado.
Entre Aspas 2: Uma admiração não volta; nós a perdemos para sempre.
As duas frases são de Nelson Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário