quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Do sutil

Viviam uma vida pacata. Jantavam juntos às nove vendo novela, adoravam comer brigadeiro no fim de semana. Ele cozinhava, ela lavava as louças. Ele trocava as lâmpadas, ela os tapetes. E a relação se dava instintivamente, numa harmonia invejável para os demais casais.

Numa noite, ela pediu que ele virasse o abajur para o seu lado para que pudesse ler o livro que ganhara. Foi o tom da voz dela que fez com que algo se estilhaçasse. Não foi o abajur, nem a lâmpada, mas a aura que existia em torno da mulher. Ele passou a vê-la mais turva e agora parecia outra. Era ela que sempre comandava seus atos. Onde antes havia consonância, ele via a mão pesada da esposa dirigindo e provocando seus atos.

Ele passou a resistir aos comandos. As discussões se tornaram frequentes. O casamento de anos começou a minguar. Até tentaram insistir, mas tudo acabou com ela decidindo quem ficava com o quê. Ele agora bebe no balcão solitário do bar e vive da procura do que perdeu. Espera poder voltar a sentir a métrica harmoniosa de uma canção enquanto caminha.

Entre Aspas 1: Todo o meu horizonte vital se povou, e se tornou mais denso, mais úmido, mais crispado.

Entre Aspas 2: Uma admiração não volta; nós a perdemos para sempre.

As duas frases são de Nelson Rodrigues.

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