domingo, 25 de março de 2012

O prazer de ser você mesmo


Exercemos diversos papéis para cumprir uma infinidade de tarefas diárias. Em muito deles cumprimos tabela, noutros de tão chatos somos meio autistas ou resignados de plantão. Mas há pelo menos um papel, uma tarefa, que te faz tão completo, que executa tão bem, que te dá todo o prazer de ser você mesmo.

Viviane é dentista. Após se dedicar a anos de estudo, passa a semana cuidando de bocas, trata de dentes e fica feliz ao ver um sorriso mais leve em seus pacientes. Mas é aos sábados, quando vai ao Samba da Graça que Viviane é Viviane. Coloca o vestido que melhor marca o seu corpo torneado e exibe um samba que inebria o resto do salão.

Ela estampa um sorriso sincero e chacoalha o quadril com a malemolência de quem sabe que tem requebrado. Durante quatro horas, pula, dança, meche as mãos, arruma o cabelo, ginga e chama a atenção. Até as mulheres param para vê-la sambar. Ali, Viviane é ela. No fim do samba, volta para casa suada e com os sapatos nas mãos. Na segunda, volta a se esconder sob o jaleco branco. Contudo, ela sabe que no sábado poderá voltar a ser ela mesma.

Pedro é fotógrafo. Aos 45 anos, é viúvo e com os filhos criados mora sozinho. Já passou pelas principais redações do País, cobriu grandes eventos e fez algumas fotos históricas. Suas imagens estão mais opacas atualmente e tem menos expectativas com a profissão.

Quando chega em casa, depois de dez horas de trabalho, ascende seu baseado. Do seu apartamento, do 17º andar, ele admira São Paulo, envolto dos seus fantasmas pessoais. Contempla sua muda de cannabis, que cresce em meio ao alecrim e a hortelã. Às vezes ouve uma musica, noutras fotografa a imensidão que pode ser vista da sua varanda.

O semblante de Pedro, sempre sério, muda. É ele que está ali agora, mas fica quase irreconhecível. Em algumas das suas noites solitárias pega o vilão e toca. E nos dias mais tristes registra pequenos detalhes do seu mundo particular. Pedro só é ele mesmo em sua sacada, após fumar maconha, tocar violão e tirar fotos que são só suas. Machucado pela vida, ele guarda seu melhor para si mesmo.

São esses prazeres de ter momentos tão singulares – e particulares ou coletivos (cada um de nós tem ou deveria ter o seu) – que nos faz levantar todos os dias. São eles que nos fazem enfrentar o trânsito, pagar os impostos, aguentar os vilipêndios diários, acalentando a chama dos sonhos, mantendo o brilho nos olhos.

É esse tesão que se perde quando voltamos para o cotidiano, que nos faz criar dias, descobrir pessoas, aprender a aprender e esperar o grande momento em que ocorre novamente. Essa é a grande abóbora, que faz tudo, tudo mesmo valer a pena.


[outubro 2011/março 2012]

Entre Aspas: Milagre é quando o mundo interrompe seus acontecimentos ordinários. Luiz Felipe Pondé.

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