domingo, 12 de julho de 2009

Programa para um sábado B: Vá a Sé com a Carol e almoce com o Joel

Foi um sábado chuvoso aquele 11 de julho de 2009. Com temperatura amena e nenhuma previsão de sol, cheguei a pensar em desistir do programa daquele dia. Mas como chuva nunca foi um impedimento para eu deixar de fazer nada, resolvi que ajudaria Caroline Castro na sua matéria para a pós-graduação de Jornalismo Literário. Eu seria um estepe, ajudante de jornalista, que daria segurança para ela circular pela Sé e entrevistar pessoas em situação de rua no centro de São Paulo.

A minha força física sempre impõe respeito nessas horas (...). Quem nos viu chegar tão tímidos, com medo de abordar as pessoas que vivem na rua, não imaginaria que horas depois, iríamos acompanhados de um deles almoçar e fazer um passeio turístico pela região.

Quando saímos do metrô, os moradores da região estavam ali na estação de metrô, todos jururus, se escondendo da chuva. Demos uma volta para reconhecimento do local e paramos em frente a uma lanchonete com salgados que pareciam muito saborosos. Imaginamos os mendigos passando ali e admirando aquelas tentações...

A chuva estava apertando. Voltamos para a estação e lá olhamos para aqueles que milhares de pessoas fazem questão de não ver. Sentados no chão, em cima de colchas e mantas distribuídas pela prefeitura eles disputavam espaço em frente a uma interferência artística de Cláudio Torzi denonimada Colcha de Retalhos. Na parede, os cacos coloridos com mosaicos davam contornos à paisagem compostas por pessoas e elementos da natureza.

É ali, que dezenas de paulistanos se amontoavam tentando juntar suas vidas em torno de um mesmo objetivo: a busca pelo próximo pega. No corre-e-corre das vielas históricas da Sé, vão tentando esquecer o caco de gente em que se transformaram devido ao uso contínuo de drogas e vão fazendo das próprias vidas uma colcha de retalhos.

Num dos cantos, estão Paulista, Mineiro, Di menor e Pequena, membros da maloca da Rua Direita, que já foram chamados de Isaías, Eder, Lucas e Luana em tempos remotos. De volta a estaca zero de suas vidas, sem comida, roupas, familiares ou quaisquer condições mínimas de sobrevivência tentam se reencontrar no lugar que é o marco zero de São Paulo. Ali, onde a cidade começou, eles dizem que formaram uma família. A Sé, no entanto, é nada, é ilusão, ou apenas uma passagem, segundo Isaías, para quem a vida não tem mais sentido e a morte seria apenas um adianto.

Na sujeira e correria daquele lugar surge espaço para paquera. Fabiana olha para Eder, que joga charme para Fabiana, que devolve olhares conquistadores, que cai na conversa de Eder e se beijam. Ele diz que não confia mais nas mulheres, afinal, veio parar em São Paulo após ter sido traído pela esposa em Belo Horizonte. “Elas dão trabalho”, avisa.

Mas escondidos no canto, os dois voltam a ser apenas jovens e, assim como fazem muitos outros da mesma idade, se beijam após minutos de conversa e uma sintonia. Por segundos, se curtem e esquecem que não têm onde tomar banho, que passam frio a noite, que precisam correr da polícia para não apanhar, que a próxima alimentação é sempre incerta...

O rapaz começa a pensar em reconstituir seu coração e a reconstruir sua vida. Ele quer voltar para a capital mineira. Quando isso acontecer, provavelmente, nem irá lembrar de Fabiana. Nas passadas pela Sé, eles apenas ficaram. E, aquilo não pareceu significar muito para ambos.

A conversa tinha rendido e Carol conseguiu boas histórias para rechear a sua matéria. Estávamos famintos. Nem sei que horas eram, mas já devia passar das 15 horas e queríamos comer.

Despedimos-nos dos nossos entrevistados e iríamos alcançar a escada quando fomos abordados. Não sabíamos, mas nós que achávamos que estávamos no papel de observadores, também estávamos sendo observados. Um homem de 43 anos nos interpelou. Ele cheirava pinga e queria contar sua história. Tinha achado interessante o fato de a gente ter conversado com outros moradores de rua.

Foi ali, em pé, no meio do caminho dos passageiros que se dirigem para o metrô que Joel contou como largou a vida estável de arquiteto e virou mendigo. A Sé se transformou em escola. Ele que era da Igreja Congregação Cristã aprendeu a roubar, a bater, a agredir e ser agredido. Não usa outras drogas por que odiou o gosto, mas a pinga também é uma lição dessa nova vida.

Tudo começou com a traição da mulher com quem viveu por mais de 20 anos. Foi pra rua, beber com aqueles que sempre ajudou com moedinhas. O lugar que cruzava todos os dias para ir trabalhar virou moradia. Gastou os R$ 370 que tinha no bolso, os limites dos cartões de crédito do Visa e do Mastercard e nunca mais voltou pra casa.

Após seis meses na rua, os miúdos olhos verdes dão cor a um rosto sem vida e encoberto por uma barba grisalha por fazer. Os cabelos penteados para trás, como um pai de família, davam espaço para uma ferida no alto da testa, resultado de uma queda entre uma bebedeira e outra.

Joel quer sair dessa vida. Ele vai sair. Conta com a ajuda de uma ong e pretende em breve voltar para as antigas atividades. A ex-mulher e os dois filhos não sabem que ele está ali. Essas histórias devem ser contadas num livro que o arquiteto pretende escrever quando a Sé for apenas uma lembrança. Carol está esfomeada e quer almoçar. Ela se despede de Joel e ele se convida para almoçar com a gente. Vamos, na chuva, os três dividindo dois guarda-chuvas, em direção a uma lanchonete escolhida pelo arquiteto, que hoje dorme em uma das entradas do prédio do Tribunal de Justiça.

Comemos aqueles enormes pratos feitos, com bife, arroz, salada, feijão e farofa. Ele prefere o picadinho de carne e mandioca. Comemos rapidamente por conta da fome. Sobra muito arroz, alguma salada e feijão. O garçom nordestino que lembra um ator da novela das 7, que também interpreta um garçom nordestino, recolhe os pratos com as sobras. Apesar da dor no peito, deixamos que ele jogue fora os alimentos, enquanto tentamos nos compadecer pelas histórias daqueles que moram na rua e passam o dia sem comer...

Prefeitura, ongs e membros de igrejas distribuem roupas e comida. Eles passam o dia em busca de dinheiro para complementar a alimentação falha e na tentativa de conseguir saciar o vício em drogas. Joel descobre que não somos de São Paulo e diz que precisamos conhecer o pátio do colégio, onde o Padre Anchieta fundou São Paulo.

A chuva aumentou e nos abrigamos num dos recuos do Tribunal de Justiça, em frente ao Pátio do Colégio, justamente no local onde Joel e os amigos dormem durante a noite. Contemplamos a estátua de uma índia datada de 1925, que marca a construção da cidade. Depoisn corremos para tocar os sinos, como fazem todos os turistas que visitam o local. Ele badala forte e ecoa sobre o som da chuva que cai forte nos nossos guarda-chuvas e encharca os nossos pés...

Voltamos para a Sé já em tom de despedida. Joel é o nosso guia e nos leva antes ao marco zero da cidade.. Esse homem que ensina que estamos sempre a beira do fracasso, que qualquer um de nós pode ser um deles um dia. Deixa a lição de que também podemos abandonar essa vida. Ele diz tão veementemente que irá dar a volta por cima que não tem como não acreditar. Joel fica com nossos telefones e e-mail. Ficamos com o seu contato em Caraguatatuba e com a promessa de que um dia iremos passear em sua casa na praia.

Quando dissemos que poderíamos achar o endereço dele na cidade litorânea pelo Google, ele parece voltar ao passado. Google soa para ele como algo mágico que remete ao passado recente em que trabalhava na Avenida Paulista, mas que não faz parte do cotidiano que leva hoje. Os olhos brilham e refletem uma vida prestes a ser retomada.

A confiança foi mútua. Ele contou sua vida. Nós desarmamos a guarda, almoçamos juntos e tivemos o prazer de conhecer um ponto turístico e histórico de São Paulo na companhia de uma pessoa que está temporariamente em situação de rua, mas que tem tudo para sair dela.

A aventura estava completa. Carol e eu formávamos uma parceria ali. À noite, fomos para um bar brindar essa amizade. Ao invés, de um espaço requintado com música ao vivo e cerveja Original por R$ 6,50, preferimos andar mais umas quadras e parar num botequim no Bairro da Saúde, frequentado por motoboys e com Brahma a R$ 2,80. O lugar era o que menos importava. Interessava a companhia, a conversa e o prazer de ter encontrado alguém com quem dividir histórias de pessoas comuns. Ótimo programa para um sábado chuvoso em São Paulo que proporcionou aventuras e descobertas. Recomendo!

PS: Esse ainda não é um dos textos de diálogos de estranhos prometidos no post passado. Aguarde, aqui, em breve.

Entre Aspas 1: Experimente o caos. Quando algo sai do seu controle o mundo volta a respirar, a confusão pode ser doce, a perfeição pode matar. - John Ulhoa na música Woo! cantada pelo Pato Fu. Contribuição da Ana Lúcia Pires via Twitter num dia em que estava envolto com uma das minhas confusões mentais.

Entre Apas 2: Quando as coisas ficam estranhas, os estranhos viram profissionais. - Hunter Thompson.

Entre Aspas 3: O brasileiro está a beira do sucesso, mas foge do sucesso porque tem alma de vira-lata. Ele detesta o sucesso e prefere ficar roendo a própria solidão com um pedaço de rapadura (...) - Frase que teria sido dita num telefonema do céu feito por Nelson Rodrigues para Arnaldo Jabor.

Entre Aspas 4: Vou escrever a história informal da multidão sem terno. O que têm a dizer, sobre seu trabalho, seus amores, sua alimentação, farras e desgostos [...] A história oral é uma mistura enorme e um caldeirão de coisas ouvidas, um repositório de verborragias, uma coleção de baboseiras, conversas, falas solenes, insanidades verbais, asneiras e absurdos. - Joe Gould.

2 comentários:

Caroline Castro disse...

Gui, adorei a descrição dos personagens! "Give pictures to the words", tá seguindo bem a dica do Gay Talese. E sobre o último parágrafo, concordo contigo em absolutamente tudo! Todo primeiro sábado do mês a gente repete a aventura em busca desses personagens invisíveis!
Bjo!

Unknown disse...

Guiii... adorei o post, como sempre. Adoro suas histórias reais, rs.

E amei, simplesmente amei a frase "Experimente o caos. Quando algo sai do seu controle o mundo volta a respirar, a confusão pode ser doce, a perfeição pode matar."... é sua???

vou roubar descaradamente e colocar no meu blog...

bjus